terça-feira, 21 de junho de 2016

O Fazendeiro e o Vira-Lata







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A data, o dia certo Wanderley esquecera. O ano ele tinha certeza: foi 1964, data muito marcada devido ao rebu da deposição do Presidente João Goulart, dias antes.
Era final de uma tarde quente, ensolarada. Wanderley, dirigindo seu caminhão, se aproximava da cidade de Águas Vermelhas, hoje Padre Paraíso - MG, com destino a Porto Alegre.  De repente,
passa por ele, em altíssima velocidade, já na entrada da cidade, uma caminhonete, placa de Pedra Azul.
Subitamente, um cachorrinho foi atravessando correndo pela pista, quase sob as rodas da caminhonete. O motorista, em vão, guinou o volante para o lado, numa tentativa desesperada para evitar o atropelamento. Foi infeliz na manobra. Após atropelar o cachorro, o veículo rodopiou pela pista e desceu a ribanceira, mato abaixo, capotando seguidas vezes.
Agora, a menos de cem metros do desastre, Wanderley ouviu o estrondo da explosão e o fogaréu subir.
Naquele momento, fez o que qualquer motorista de bom senso faria: imediatamente, próximo do sinistro, atravessou o caminhão na pista de acostamento a acostamento, interrompendo completamente o tráfego naquele local da BR-116, Rio - Bahia, forçando o socorro.
Caminhoneiros e carreteiros paravam seus veículos e, num gesto de solidariedade, corriam para o carro em chamas, carregando potentes extintores.
O motorista, pensaram, certamente estava preso no meio das ferragens. A caminhonete ficou de rodas para o ar e as chamas a envolveram completamente. Sem poder se aproximarem, devido ao intenso calor, todos começaram a lamentar a sua morte. No entanto, ficaram atônitos, quando viram ele sair de uma enorme moita de capim. Por milagre foi jogado para fora do veículo. Apressaram-se a ajudá-lo, quando receberam essa resposta, dada com a maior calma deste mundo, num típico sotaque de mineiro do interior:
- Brigado uai, tou quase bom sô!
O cachorrinho ferido, responsável pelo desastre, gemia de dor no acostamento. Os pneus esmagaram suas pernas e praticamente toda a região traseira. O coitado dava voltas sobre si mesmo, uivando
e ganindo de forma dolorosa.
O homem vestia terno branco, sem gravata. Calçava botas de cano e usava cinto largo. Após ficar de pé, pegou o chapéu negro de abas largas sobre o capim e, após batê-lo seguidas vezes na coxa, pôs na cabeça. Sangrava na face direita, supercílio esquerdo e em um dos ombros. Alguns se ofereceram para ajudá-lo na subida do barranco e levá-lo a um posto médico. Ele agradeceu:
- Precisa não sô, é pouca coisa uai! 
Em seguida começou a subir o barranco, segurando-se nos arbustos.
Lá no alto, ele se encaminhou para o cachorrinho atropelado. Devido ao acidente ter acontecido já na entrada da rua, era grande a multidão, sem contar os motoristas dos veículos parados no engarrafamento

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Quando o homem ia chegando perto do cãozinho, muitos voltaram as costas, dizendo: "Não quero ver o final. Ele vai acabar de matar o bichinho!"
Engano: todos ali, sem exceção, ficaram completamente abobalhados, quando o homem se agachou junto ao cão, botou ele nos braços sujando-se de sangue, levantou-se e sentenciou:
- Vamos procurar um veterinário, seu pestinha, filho de um trem!
E vou dizer procê uai, o prejuízo que me deste hoje, vais pagar todinho, pro resto da tua vida, guardando a minha casa da fazenda, entendeu? E não me venha com lambidelas, porque tou que nem um trem contigo!
Foi um alívio geral. Muitos até sorriam com esse desfecho. Wanderley mesmo, quase não acreditava no que estava vendo. 
O fazendeiro se encaminhou para uma casa no início da rua, onde uma placa de acrílico na parede dizia: "CLÍNICA VETERINÁRIA - DIA E NOITE". 
Após desimpedir a pista, Wanderley estacionou o caminhão em frente a um barzinho ao lado da clínica. Saltou e foi ao bar. Pediu um refrigerante e, com a garrafa na mão, disfarçadamente, caminhou até uma janela aberta da clínica. Justo no momento em que o fazendeiro, com o cão gemendo nos seus braços, indagou para o médico que botou o cãozinho sobre uma mesinha de ferro:
- Tem jeito pra ele doutor?
O veterinário, após apalpar parcialmente o cachorrinho, voltou-se,  meneou levemente a cabeça para os lados num gesto descrente e sentenciou:
- Somente mesmo um milagre pode fazer este coitado continuar vivo. Está muito machucado, arrebentado!
Wanderley ficou boquiaberto ao ouvir o fazendeiro recomendar, de forma resoluta;
- Faça esse milagre acontecer e te levo na minha fazenda para você escolher, tirando o reprodutor chefe, o boi mais bonito que tiver lá.
O veterinário, surpreso com aquela proposta, retrucou:
- Mas ele é um vira-lata de rua, sem raça, sem dono e sem valor algum!
O fazendeiro completou:
- Ele agora tem dono, é meu. E esqueci de avisar: entrego o boi em domicílio, aqui na sua porta.
Quando o veterinário tocou no cachorro, este ganiu de dor.
O fazendeiro foi incisivo:
- Com anestesia, com anestesia!
O veterinário se desculpou:
 - O pior é que estamos sem anestesia na cidade. Só se pegar em Teófilo Otoni. São cem quilômetros e um carro, para ir lá e voltar, vai custar os olhos da cara e... 
O fazendeiro não deixou ele terminar, interrompendo-o:
- Mande vir num táxi. Avise pro chofer que se fizer o percurso na metade do tempo normal, pago a corrida em dobro. Enquanto isso vou no bar, aqui ao lado.
O veterinário precipitou-se, à toda, para a companhia telefônica, a uns 50 metros da sua clínica [nessa época, quase não existia celulares e nem fones fixos residenciais].
Wanderley retornou ao bar e pô-se ao lado do balcão, terminando de tomar seu refrigerante. O fazendeiro entrou e pediu um litro de conhaque ao balconista. Sorveu alguns goles no gargalo e, ensopando as mãos, passava a bebida nos ferimentos.
    

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Wanderley pagou o refrigerante, subiu na cabine e prosseguiu sua viagem. Com cerca de trinta  minutos de viagem, sentiu um forte repente de emoção tomar momentaneamente o seu corpo. À sua frente, vinha um automóvel em alta velocidade, com os faróis acesos e a buzina aberta, ligada direta. Cruzou com ele feito um raio. Era o táxi com a anestesia, para operar o vira-lata. 

Cerca de quinze dias passados, retornando de Porto Alegre, Wanderley parou seu caminhão em Águas Vermelhas, na porta da Clínica Veterinária. O médico estava de jaleco branco, sentado numa cadeira, sobre o passeio, ao lado da porta. Não passava das quatro horas da tarde. O sol estava causticante, mas a sombra batia no terreiro.
Wanderley saltou, deu boa tarde e disse:
- Doutor, faz uns quinze dias que um homem tombou uma caminhonete ali perto, só para evitar de matar um cachorrinho...
- Sei, sei - o médico interrompeu sorrindo, - o molequinho escapou. Ainda está meio engessado, lá na fazenda do homem que o adotou. O safadinho está na vida que pediu a Deus, ou a São Lázaro. Tem uma cadeira de balanço na varanda do casarão só para ele. De quatro em quatro dias, um carro vem me pegar aqui para ir lá lhe cuidar . E tem mais: sua dieta é de fazer inveja a rico besta. Come filé, alcatra e maminha, três vezes ao dia!
Wanderley sorriu, se despediu e, quando segurou na maçaneta da porta para subir na cabine, retornou  e perguntou: 
- Doutor, no dia do desastre, quando o senhor dava o primeiro socorro pro cachorrinho, sem querer, ouvi aí pela janela, o fazendeiro lhe prometer um boi, se salvasse o vira-lata. Quer dizer; se ele escapou...
O médico irrompeu numa sonora e gostosa gargalhada e chamou: 
- Venha amigo, vamos aqui ao meu quintal.
Enquanto seguiam pelo corredor da clínica, que também servia de residência, ele foi dizendo:
- Olha, o boi não ganhei não, pois uma cobra picou e matou o reprodutor chefe, então a fazenda ficou com problema de reprodutor. Mas ganhei coisa melhor, veja lá.
Apontou para o fundo do grande quintal, onde uma vistosa vaca holandesa, comia num cocho, um monte de capim verde, cortado com cana picada. Mamando sôfrego, nas suas fartas tetas, um lindo bezerrinho, com os mesmos traços genéticos da mãe.
Wanderley indagou, com ar pateta, misturado com incredulidade:
 - Mas doutor, ele lhe deu essa preciosidade de vaca, com bezerro e tudo?
- Sim e não - respondeu ele, - me deu somente a vaca. Mandou que eu escolhesse a mais bela das prenhas, já nos dias de parir. Chegou antes de ontem, já com bezerrinho e tudo. Quer saber quantos litros de leite tiro por dia? Dez, cinco pela manhã e cinco à tarde. Só não tiro mais porque seu filhinho mama mais do que um trem!
- Isso é incrível! como é o nome dela? E o bezerrinho já foi batizado?
O veterinário sorriu e disse:
 - Olha amigo,  tive que rebatizar ela, em homenagem àquele cachorrinho que me deu tanta sorte. O nome dela agora é, "Vira-Lata" e seu filhinho, "Latinha."
Wanderley não aguentou mais. Ali mesmo explodiu numa sonora e gostosa gargalhada.



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