domingo, 5 de junho de 2016

Jesus Cristo é o Senhor

                                                                                 
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Corria o ano de 1984... Eu subia com o meu caminhão carregado, a Serra do Mutum, entre a cidade de Jequié e o entrocamento de Jaguaquara - BA, sentido Salvador, na BR-116, a lendária Rio-Bahia. Passava das cinco horas da tarde, o sol já descambando pro poente.
Um pouco acima do meio da serra, de quase oito quilômetros, um caminhão também carregado, mesma marca do meu, porém mais novo, começou a passar por mim. Quando terminou a ultra-passagem, ligou o pisca e retornou à faixa da direita. Foi aí que percebi a citação bíblica, em letras garrafais, pintada no lameirão:  "JESUS CRISTO É O SENHOR".
Disse para mim mesmo em pensamentos. Esse colega deve ser evangélico. O caminhão começou a se distanciar do meu. Quando se encontrava a uns cinquenta metros, estranhei ele desviar para o acostamento onde percebi, mais à frente, um cachorrinho deitado, bem na beira do asfalto, no chão de barro e capim.
A princípio, julguei que o colega fosse fazer uma parada de emergência ao sair da faixa de rolamento porque, profissional algum do volante, de bom senso, jamais iria parar um carro carregado, subindo uma serra, o motor naquela temperatura! Por isso julguei ter acontecido algo de anormal no veículo, ou mesmo um possível cochilo do seu condutor.
Foi nesse instante que aconteceu o motivo torpe, e até diria, revoltante, pelo qual escrevi este fato verídico.
O colega, por incrível que possa parecer, desviou pro acostamento e passou com o pneu dianteiro sobre a cabeça do pequeno vira-lata que dormia aproveitando a sombra de um pé de umbu. Feito isso, retornou para a pista e prosseguiu viagem.
Da minha cabine e a uma relativa distância, ouvi o estouro da cabeça do cachorrinho. Seus miolos se espalharam para dentro do mato e até o meio da pista. Desviei pro acostamento e parei antes do animalzinho. Um menino desceu às pressas do pé de umbu onde, mais para trás, tinha uma casinha de taipa. Já chegou perto do cãozinho chorando desesperado, com as mãos na cabeça e gritando:
"Papai, mamãe, corram aqui, Mataram o meu Dorli! O chofer do caminhão passou com o pneu da frente por cima da cabeça dele! Meu Deus do céu, Dorli não fez mal algum, estava dormindo fora do asfalto! Mataram o meu Dorlizinho!!"
Correu até meu caminhão, subiu no estribo da porta direita e perguntou, em prantos, os olhos inundados de lágrimas:
- Moço, porque o seu colega matou o meu cachorrinho, porque?!
Revoltado com o que acabara de presenciar e sem saltar da cabine, respondi, tentando contornar a situação:
    
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- Acho garoto, que o colega cochilou ao volante e, no rápido instante que saiu da pista, por falta de sorte do seu cachorrinho que estava...
O menino me interrompeu:
- Ele não dormiu no volante não, moço. Eu vi, de cima do pé de umbu, quando ele virou o volante pra sair da pista e vir pro acostamento. Os olhos dele estavam abertos. Ele matou o meu Dorli, por pura perversidade!
Disse isso e voltou para perto do cachorrinho, chorando inconsolável e lamentado:
- Eu tenho o meu Dorli desde pequetitito, ainda mamando! Meu Deus, mataram o meu Dorli!!
Retornei para pista e prossegui viagem, justo no momento em que os pais do menino, correndo, se aproximavam do cãozinho morto.
No momento que o colega desviou pro acostamento, cheguei a imaginar que o colega cochilara, mas o menino foi taxativo: "Ele estava com os olhos abertos!"
Enquanto terminava de romper a serra, pensei para mim mesmo:
"O ser humano que manda pintar uma citação tão bela e sublime como aquela, não pode ser capaz de praticar tamanha crueldade com um animalzinho inocente. Alguma coisa aí está errada! Das duas uma: ou ele comprou o caminhão já com aquela citação escrita e a deixou lá por deixá-la, ou o proprietário mandou pintar e quem vai ali dirigindo é o seu motorista.
No entrocamento de Jaguaquara, de longe, percebi o caminhão parado na área de um posto de abastecimento, em frente ao bar e restaurante. Não me contive e parei meu carro ao lado do dele. Saltei e fui até o bar, onde o colega tomava um cafezinho. Pedi um refrigerante, dei boa tarde para ele e elogiei:
- Bonito esse seu caminhão, colega. É seu mesmo? 
Ele me olhou com cara de poucos amigos e respondeu:
- Sou o proprietário dele, porque?
- Foi o senhor quem mandou pintar aquela citação tão bonita no lameirão ou já comprou o carro com ela?
- Mandei pintar, semana passada, em Caratinga. Eu sou um servo de Deus.
Eu só queria ter essa certeza pra lhe perguntar: porque você desviou o caminhão da pista e foi esmagar a cabeça daquele cachorrinho, dormindo na beira do acostamento, ali atrás, acima do meio da serra?
Ele me respondeu com quatro coices:
- Por um acaso, você é membro da Sociedade Protetora dos Animais, ou tem alguma carteirinha de defensor de vira-latas?
- Olha colega, eu julguei que a pessoa ao mandar pintar no seu lameirão, uma citação tão bela e sublime como essa aí, fazendo questão de alardear suas crenças religiosas e o amor divino, fosse incapaz de praticar tamanha crueldade com um ser irracional.

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Pensei que esse amor, espalhado aos quatro ventos entre os seres humanos, também se estendesse aos animais inocentes! Reconheço que me enganei.
Ele me aconselhou:
- Porque você não vai ali na delegacia do entrocamento e registra uma queixa contra mim. Quer o meu nome e CPF? 
Ignorei a garrafa de refrigerante, que a garçonete botou sobre o balcão e segui pro caminhão. Antes de chegar à cabine, voltei-me e falei pra ele:
- Uma criança está lá no meio da serra, se esvaindo em lágrimas. A sua bíblia não diz nada sobre...
Ele me interrompeu, metendo a mão direita no bolso da calça, retirando de lá uma carteira de cédulas e dizendo:
- Escute aqui, defensor de vira-latas, quanto você quer pra voltar lá e fazer o funeral do cachorro? Ora me deixe!!
Dei-lhe as costas, subi na cabine e, revoltado, prossegui viagem. Saindo, dei uma última olhada para o lameirão e, indignado, reli a citação tão bela e sublime: "JESUS CRISTO É O SENHOR".

Esta é uma história verídica, ocorrida no mês de maio de 1984.
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