domingo, 5 de junho de 2016

Um Anjo da Guarda Com 22 Mortes


    
Esta é uma história verídica, ocorrida entre as cidades de São Paulo-SP e Feira de Santana-BA, no mês de junho de 1962.
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Primeiro lugar no "1º Concurso Literário Nacional Alpargatas de Histórias das Estradas", São Paulo, 1984
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Fazia um frio de doer os ossos. Saí de São Paulo mais ou menos umas sete horas da noite, dirigindo um caminhão cara-chata [frontal] trucado. O destino da carga de vergalhões era Salvador - BA. Peguei a Rodovia Presidente Dutra debaixo de uma baita garoa. No posto Sakamoto, saindo da cidade, com o estômago roncando, parei para o rango. Jamais gostei de jantar e prosseguir viagem, mas  não tinha almoçado e era preciso rodar toda a noite. Passei quase uma semana sem conseguir carga e o patrão, pelo telefone, já prometera até comer o meu fígado!
Umas nove horas, saí do restaurante. Quando batia nos pneus, os dois se aproximaram. Não traziam nada nas mãos. Um deles, o mais velho, me perguntou, com um forte sotaque nordestino:
- Moço o sinhô, por acaso, tá indo pro lado do Nordeste?
- Estou sim - respondi, - pra Salvador.
- Eu me chamo Chico e o meu conterrâneo, Zé de Bila. Agente quer pedir pro sinhô, uma caridade de levá nois inté a cidade de Feira de Santana? De lá nois se vira com outra caridade pra mais a frente. A gente veio de Serra Talhada, no Pernambuco, pru mode ganhar a vida por aqui. Apois logo que sartamo na Estação Rodoviária, robaro nossas mala cum tudo o que tinha dentro. só restou mermo as roupa do corpo. Aí viemo a pé inté aqui. Purisso tamo pedindo essa caridade pru sinhô levá nois, pelo menos inté um pôco pra mais perto do nosso torrão natal, donde nois nunca divia de ter saído. Bem qui minha mãe falou: fio, passe fome mas passe junto dos teus. Sofra mas sofra perto da famía. Inté parece qui ela tava adivinhando.
- Escutem - falei pra eles, - estou com essa carga baixa de vergalhões aí. Meus encerados emprestei pra um colega da empresa, dona deste caminhão. Ele vai carregar uma carga alta, amanhã. Se vocês quiserem se abaixar, aí junto do malhal, pra livrar dos guardas rodoviários e se conseguirem aguentar o frio, podem subir. Sabem como é, viajo sozinho e na cabine não posso levar. Vocês me entendem, não é?
- Oxente moço, nois inté agradece dimais. 
Eles subiram rápido e se encolheram no canto da carroçaria, junto ao malhal.  Retornei ao bar, tomei um cafezinho, subi na cabine e toquei pra frente. Antes da cidade de Aparecida do Norte, a garoa deu lugar a chuviscos e estes, logo se transformaram em chuva pesada. Abaixei o vidro da porta e estiquei o braço esquerdo para fora. Os pingos da chuva pareciam mais, minúsculos pedaços de gelo. Cocei a cabeça ao lembrar dos meus dois caronas. Eu ali agasalhado, sentia frio; imaginem então eles, sem ter nada pra se cobrirem! Em Aparecida, parei debaixo da cobertura de um  posto de abastecimento, destravei a porta direita, botei a cabeça para fora e gritei: 

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- Oi gente, venham pra cá, ou vocês vão chegar em Feira de Santana feito duas pedras de gelo!
Eles entraram na cabine esfregando as mãos e tilintando os dentes.
- Escutem pessoal - falei enquanto recomeçava a viagem, - estou com os dias contados para entregar essa carga. Portanto, super atrasado. Vou tocar a noite inteira. Se derem sono, não façam cerimônias, se recostam por aí e podem puxar um ronco.
Pela manhã, parei na cidade de Sapucaia - RJ, e comi dois sanduíches com café. Eles saltaram e ficaram caminhando por ali, de um lado para outro e não mastigaram nada. Pensei: eles não devem estar bom de bolsos! Eu também não me encontrava lá essas coisas de dinheiro, depois de tantos dias esperando carga na transportadora.
Ao meio dia, fiz nova parada, agora pro almoço. Entrei no restaurante e pedi uma refeição. Ao olhar lá para fora, vi os dois caronas dividindo uma bisnaga de pão sem manteiga. Levantei, fui até eles e perguntei:
- Escutem aqui, vocês não estão pensando em chegar na terra de vocês só na base do pão seco, não é?
- Chico, respondeu: 
- Apois é seu moço, o que vai se fazer! 
- Se vai fazer sim - falei. - Vamos pro restaurante.
Lá dentro chamei a garçonete, mandei suspender a refeição e descer três pratos feitos.
Sentamos e expliquei pra eles:
- Olha gente, a Rio - Bahia [BR-116] está sendo asfaltada. Nem a metade ainda está pronta. Daqui pra Salvador, são de seis a sete dias de viagem, devido às interdições das construtoras e os atoleiros, nessa época de chuvas. Isso também se rodar, entrando pelas madrugadas. O meu dinheiro está curto, mas dá pra garantir os pratos - feitos  do meio-dia. Pela manhã e à noite, agente quebra o galho com pão e café, ou refresco, está bem assim?
Eles se desmancharam em agradecimentos.
Antes da cidade de Caratinga - MG, passando das duas horas, parei o caminhão para almoçar e abastecer. Tanque cheio, estacionei debaixo de um bambuzal, na saída do Posto. 
Após o almoço, armei a rede nos grampos do fundo da carroçaria e puxei aquele ronco. Antes, mandei eles se ajeitarem pela grama ou na cabine. Acordei com o anoitecer e dirigi por quase a noite inteira. Depois da cidade de Governador Valadares - MG, cerca de três horas da madrugada, Não aguentei mais. Encostei o caminhão no terreiro de uma casa, cruzei os braços em cima do volante, apoiei a cabeça sobre eles e adormeci. Precisava recuperar as energias. A BR-116 estava uma calamidade! Havia região, principalmente no Estado de MinasGerais, de se rodar pouco mais de cem quilômetros por dia. Os caronas dormiram, um no banco e o outro sobre a tampa do motor [para você, leigo no assunto, a cabine frontal, só tem dois bancos e a tampa do motor fica entre eles]. 

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O anoitecer do quarto dia de viagem nos encontrou no posto de abastecimento Veredinha, no arraial do mesmo nome, a cerca de 40 quilômetros da cidade de Vitória da Conquista - BA. Ao estacionar no local, fui informado por colegas, vindo em sentido contrário que, metade do mundo  estava desabando em água, de Conquista pra frente! As filas de veículos pesados, sendo puxados por tratores nos desvios e atoleiros eram intermináveis. Prudente, resolvi dormir por ali mesmo onde, por sorte, ainda não se via nuvem escura no céu. Durante o dia viajei direto, sem perder tempo. Sequer paramos para almoçar. 
Depois do banho, fomos jantar os pratos feitos do meio dia. Mais tarde, já descansado, armei a rede, como sempre, na traseira da carroçaria. Peguei meu realejo e comecei a debulhar, entre os lábios, algumas valsinhas com toadas sertanejas.  
Chico sentou-se ao lado, recostando-se no pneu do truck. No céu ainda vislumbrava-se algumas estrelas, entre nuvens escuras, que chegavam se deslocando ao sabor do vento. Botei o realejo no bolso da camisa e perguntei:
- Onde está o seu companheiro, Chico?
Ele respondeu apontando para uma bodega, misturada com bar, repleta de beberrões e mulheres de conduta duvidosas:
- Tá ali, enchendo a 'moringa' sem um centavo no bolso. É sempre assim, seu Orlando: um prato de comida, é dificil de se conseguí, agora cachaça, é só vosmicê alevantar um dedo qui logo um monte de garrafa aparece. Já resmunguei pro zóio de cobra, que é o apelido dele, num inchê a cara não! Pru mode de que nois já tá de favô cum o sinhô e num se pode abusar da boa vontade alheia. Mas ele é mais teimoso qui nem um burro veio amuado!
- Se preocupe não, Chico - falei, -  deixe seu companheiro tomar o gorozinho dele, sossegado. Agora Chico, me explique, somente a título de curiosidade: porque o seu amigo tem esse apelido assim, tão interessante?
- Apois ele num tem os zóios igual a de serpente venenosa!
Retrucou ele.
Levantei da rede, guardei o realejo na cabine e chamei:
- Chico, vamos tomar um cerveja no bar-restaurante do posto. Se quiser, também pode tomar uma pinga.
Tomei um aperitivo e uma cerveja; Chico somente um cafezinho, enquanto me fazia companhia. 
Mais ou menos umas onze horas, voltei para a rede. Chico me acompanhou e sentou no mesmo lugar de antes. Meio sonolento, Perguntei:
- Não vai deitar, Chico? A cabine está aberta. Eu vou dormir aqui mesmo.
Ele respondeu: 
- Acho qui tô cum essa tá de insônia, seu Orlando. É uma farta de sono da gota serena!
- Mas, em compensação, você dorme bastante durante o dia, não é? 
- Apois é - respondeu ele, - deve ser pru mode o sacolejo do carro, aí o danado do sono chega. Intenda um troço desse!

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Ao me ajeitar, procurando uma posição mais confortável, Chico perguntou:
- Seu Orlando, eu queria perguntá pru sinhô, um troço qui tá deixando os miolo da minha cabeça meio encucado!
- Pode perguntar Chico, estou aqui pra lhe responder.
- Pois bem: pru mode de que o sinhô freou o caminhão, onte dimanhã, que chegou a dá uma rabanada na pista, somente pra não atropelar um cachorro veio? E antes de respondê, vou lembrá também qui, desde quando pegamo a carona inté agora, o sinhô já desviou de matá três raposa, dois tatu, três sariguê e um muntueiro de sapo!
- Ora Chico - respondi, - a resposta é muito simples. É um princípio meu, não matar nada neste mundo!
- Tá bem seu Orlando, mas eu fiquei mesmo encucado foi quando o sinhô deixou de passar por riba de uma cobra de mais de um metro de cumprimento! Mesmo em velocidade, deu pra se vê qui não era jiboia e sim, uma cobra venenosa!
- Chico, a serpente só ataca pra se defender. Apesar da fama ruim,
elas tem uma grande virtude: o seu veneno, serve de antídoto para sua própria picada.
Após um instante de pausa, Chico perguntou:
- Pois é, o sinhô, desse jeito que leva a vida, deve ter uma consciência leve, muito leve mermo! O sinhô nunca matou uma pessoa, não é?
Quase me levanto da rede, ante a insinuação dele:
- Como matar alguém, Chico! Você parece está maluco em falar um troço desse!
- Me adescurpe seu Orlando, eu não quis lhe ofendê. O que quero falá, é se o sinhô num matou numa briga, coco da cabeça quente, ou nessa vida de estrada que leva, pra riba e pra baixo, atropelando sem culpa, uma pessoa. Foi desse jeito que quis falar.
- Lhe compreendo, Chico. Realmente, no meio de uma briga, cabeça quente, ou um atropelamento involuntário, o sujeito pode matar um ser humano. Ninguém está livre de uma fatalidade dessa. Mas eu, graças a Deus, até hoje escapei de um desacerto desse. E lhe digo mais; se isso acontecesse comigo, mesmo sem culpa, iria carregar um imenso peso na consciência pro resto da vida.
Chico comentou: 
- E tem pessoas qui nem sabe se existe essa tá de consciência, o sinhô num acha?
- Acho sim, Chico. E digo mais; a vida nos é muito cara, tão cara que ninguém a troca nem por todo o dinheiro deste mundo! Portanto Chico, o sujeito que mata um ser humano, está tirando dele, o que existe de mais precioso sobre a face da terra, uma vida. Sem contar que ela nos é dada graciosamente por Deus, sem cobrar um centavo que seja. Ele é o dono das nossas vidas Chico, e somente a Ele, cabe determinar a nossa hora. A pessoa que mata outra, adquire com Deus, um débito incomensurável. 
Chico mordeu levemente o lábio inferior e, após um momento de silêncio, comentou: 

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- Quer dizê, seu Orlando, qui o sujeito qui mata otro, fica amaldiçoado pro resto da vida, não é?
- Chico - falei, - existe uma espécie, acho que deve existir, uma espécie de classificação para isso que não sei bem explicar. Por exemplo: como comentamos há pouco. Uma coisa é o sujeito matar outro, digamos atropelado, de forma involuntária, ou matar num momento de briga, cabeça quente, ou mesmo na defesa da honra familiar desrespeitada, porque ninguém tem sangue de barata. Na guerra também se mata sem culpa. Acho, Chico, que nesses casos, o débito para com Deus, deve ser mais atenuado. Pois é muito diferente de quem premedita uma morte.
Houve um instante de silêncio. Chico afagou sua cabeça e disse, de forma pausada, olhando para o céu, agora de nuvens escuras:
- Apois eu conheço um sujeito na minha terra que é pistoleiro de aluguel. Já matou 22 pessoas. A maioria gente inocente, pais de famías...
- O homem tem 22 mortes nas costas, Chico?
- Sim, seu Orlando. é só os coroné pagá, apontá e ele passa fogo.
Não qué nem sabê quem é. Qué dizê qui um sujeito desse quando morrê, vai direto pras profundezas dos inferno, não é mermo?
- Chico - falei, - um sujeito desse é digno de piedade.
- Como ter piedade dum miserável assassino desse, seu Orlando!
- Chico um homem desse, já vive praticamente um inferno em vida. Tirar 22 vidas da terra, sem sequer conhecer suas vítimas, salvo no instante do disparo, é de uma crueldade inconcebível. Quantas viúvas, quantos órfãos inocentes estão à toa pelo mundo por causa dele. Cada dor, cada lágrima vertida desse povo, será debitada na conta divina desse pistoleiro.
- Quer dizer, seu Orlando - indagou ele pensativo, - que se um sujeito desse se arrependesse, assim não sei como, o sinhô acha qui tinha algum tipo de perdão pra ele? 
- Olha Chico, quem sou eu pra lhe responder isso. Pra lhe dizer a verdade, nem religião definida tenho. Portanto, esse negócio de perdão, não entendo quase nada. Mas, pelo que já ouvi falar, não existe pecado pra Deus, seja de que tamanho seja, que ele não perdoe. Certamente, isso também depende da pessoa que deve e o que ela tem para oferecer a Deus em troca desse perdão. No caso desse pistoleiro com 22 mortes, aí então é débito que não acaba mais! Vamos dormir, Chico. Precisamos sair, antes do amanhecer.
Adormeci. Passava das duas horas da madrugada quando acordei, ouvindo soluços. Era Chico. Ele continuava sentado, recostado no pneu. Estava com as pernas dobradas e os braços sobre os joelhos. Em cima deles, a cabeça apoiada, com o rosto escondido. Seus ombros se estremeciam a cada soluço.
- Perguntei preocupado:
- Está sentindo alguma coisa, Chico?!
Ele se assustou, como uma criança ao ser flagrada em meio às traquinagens. 

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- Não é nada não, seu Orlando. É saudade da minha terra e da famía. Durma sossegado, ainda tou sem sono.
Adormeci novamente.
No sétimo dia de viajem, carro enlameado, descemos a serra do 100 e, cerca de uma hora mais tarde, entramos na cidade de Milagres.
No posto de abastecimento, bar e restaurante Moderno, passei as as falas no Sr. Rubens, proprietário e consegui os três pratos feitos fiados. O dinheiro já se fora, desde Jequié. Chamei os dois para a mesa. Eles recusaram. 
- Oxente seu Orlando - disse Chico, - nois nunca vimo uma coisa dessa! Assim já é ixplorá o sinhô dimais!
Resmunguei:
- Olha, se vocês não comerem, os pratos vão ficar cheios, aí na mesa.
Quando terminamos, avisei que ia mandar lubrificar carro com o aleijadinho [ele tem os dois pés virados para dentro, desde o ventre materno e é conhecido por esse apelido], meu amigo. Também pendurei a conta. 
Ao olhar para o balcão, vi Chico pedir ao balconista uma folha de caderno e uma caneta emprestada. Sobre a tábua do balcão, junto da parede, começou a rabiscar o papel. Ao passar perto dele, indo para o sanitário, me disse que fazia uma carta para os pais e colocaria no Correio, ali perto. Justificou:
- Nóis pode num encontrá carona fácil a partí de Feira de Santana. Aí a carta chega na frente pru mode avisá qui tamos a caminho. 
Mais tarde, quando terminou de escrever, meio envergonhado, me pediu alguns trocados pro envelope e o selo.
Saímos de Milagres, tardezinha. Quase nove horas, chegamos em Feira. Parei o caminhão na área do posto do Sr. José Guimarães, na entrada da cidade e falei pros caronas:
- Gente, aguentem um pouco aí, que vou ver se consigo um dinheiro emprestado com seu Murilo, dono do bar. Não quero chegar em casa duro e lhes adiantar uns trocados pro seus pratos feitos, aí pra frente. 
Menos de dez minutos depois, retornei. Abri a porta da cabine e nada dos dois caronas. Devem ter ido ao banheiro - pensei. Cinco minutos passado e nada deles! Procurei pela área do posto e também não! Desconfiado, acendi a luz interna e quase reviro a cabine, conferindo minhas coisas: documentos, roupas, ferramentas, tudo... Não faltava coisa nenhuma. Disse para mim mesmo:
"Os filhos da mãe, ingratos, se mandaram sem sequer me dar um muito obrigado! Tome na cara aí, Orlando. Você fez o que fez com aqueles filhos de uma jumenta e veja aí o pagamento que lhe deram! Isso é pra você deixar de ser besta, otário, idiota!
Retado da vida, sentei no banco por traz do volante e, quando ia funcionar o motor, percebi sobre o painel, o recorte da primeira página de um jornal de São Paulo, com a data de dez dias atrás. Mais ao lado, o envelope que Chico deveria ter posto no Correio. A manchete do jornal despertou a minha atenção:

                                                                                          Página - 06

"MOBILIZADA TODA POLÍCIA DE SÃO PAULO EM BUSCA DE DOIS PERIGOSOS ASSASSINOS EVADIDOS ONTEM DA PENITENCIÁRIA DO ESTADO. SÃO CRIMINOSOS FRIOS E PISTOLEIROS DE ALUGUEL NO NORDESTE. UM DELES CARREGA 22 MORTES NAS COSTAS. O OUTRO, DENTRE VÁRIOS CRIMES, ASSASSINOU A PRÓPRIA MÃE. ESSE ÚLTIMO É CONHECIDO COMO OLHO DE COBRA OU ZÉ DE BILA  E O OUTRO, CHICO DE VENÂNCIO."
Foi aí que, ao cravar as vistas nas fotos dos marginais, senti um frio gelado percorrer a minha coluna e a boca ressecar. Por mais que tentasse, não conseguia desgrudar os olhos, desmesuradamente abertos, fixados naqueles dois rostos conhecidos. 
Eram os meus dois caronas! Ao relembrar as sonecas debaixo dos arvoredos, os sonos exausto nas madrugadas e eles ao meu lado, o frio mais aumentava e a folha do jornal mais tremia nas mãos! 
Com tudo isso, comecei a juntar as minhas dúvidas: porque não me mataram! Chances para eles não faltou. O dinheiro para a comida era pouco, mas tinha o do abastecimento! [nessa época não tinha isso de cartão de crédito, cheque... Ninguém confiava. tinha de ser dinheiro vivo].
O normal era eles terem me matado mas... porque me pouparam?!   
Com a cabeça fervendo, retornei ao bar. Mandei seu Murilo botar uma dose dupla de conhaque, descer uma cerveja e pendurar juntos com o dinheiro que lhe tomara, minutos antes. Enquanto ele derramava o conhaque no copo, comentou:"
- Orlando, vai talagar essa doze dupla, castigar a cerveja e vai pegar estrada?!
Respondi:
- De jeito nenhum seu Murilo, vou dormir por aqui.
Quando virei o copo, garganta abaixo e o conhaque bateu lá dentro, me deu um estalo na cachola. Falei, em voz alta, voltando para o caminhão, quase correndo. A carta. Era a pedra que faltava para ser encaixada no quebra cabeça! Se deixaram o jornal propositalmente para que eu o encontrasse, então fizeram o mesmo com a carta. Nela, com certeza, estava a resposta porque não me mataram! Subi na cabine, acendi a luz, abri o envelope e comecei a ler. 

[transcrita do original, com todos os erros de ortografia]

"Amigo, logo qui nóis butá os pé in Feira de Santana, vamo caí no mundo sem nem se adespedi do sinhô. Mais num é farta de consideração não. Nois pagou sua carona e tudo que feis por nois, cum a sua própia vida. Adispois de lê o jornal vai entender tudo. Nois estava só isperando se afastá mais de São Paulo, pru mode sangrá o sinhô. Mais quando vosmicê tirou nois de riba da carroçaria, debaixo de chuva, e botou na boleia, começou a sarvá sua vida ali. No ôtro dia, quando nois repartia o pão, Zoio de Cobra tava doido pru mode fazê logo o sirviço naquele dia. Aí o sinhô dexou de pegá o seu armoço cum fartura, pru mode dividir prato feito cum nois. Até antes disso, eu tava indeciso se lhe matava ou não. Mais, adepois do armôço, eu arresolvi qui num matava mais o sinhô nem pur todo dinheiro desse mundo.

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Apôis bem, mais pra riba, quando parou pra durmi, debaixo dos arvoredos, na beira da área daquele posto de abastecimento, Zoio de Cobra isperou vosmicê adurmecê, pegou a peixeira e disse qui tinha chegado a sua hora. Eu grudei no braço dele no ar, quando descia cum a faca no prumo do seu coração. Encostei a minha peixeira na garganta dele e disse qui, se tentasse aquilo novamente, eu sangrava ele, com a mesma calma qui se sangra um boi no matadouro! Ainda alembrei pro Zoio de Cobra, qui agente pode inté matá uns trezentos ai pra frente, mas esse moço nois num mata não.
Quando o sinhô pediu os pratos feitos, em Milagres, eu arresolvi lhe fazê essas mal traçada linhas, pru mode o sinhô sabê qui num fomos tão ingratos assim, e mode também alembrá o quanto pode valê uma caridade dessa qui o sinhô feis pra nois. E digo mais: quando vosmicê me viu durmindo durante quase todo o dia, nesse viajão todo, deve ter pensado qui eu sou um baita durminhôco, mais num sou não:
Eu durmia quando vosmicê dirigia, pru mode quando o sinhô tava durmindo, eu tava acordado, vigiando o seu sono, apois Zoio de Cobra podia lhe sangrá num abrí e fechar de zoio. Quem sangrou a propria mãe, é capaz de tudo! Me adescurpe os mal traçado garranchos seu Orlando, e só não dou adeus pro sinhô, pru mode de que, um sujeito que já tirou 22 vidas desse mundo, perde o direito de falá nesse nome. Mas o sinhô, se quiser, pode me dá esse adeus."

                                                 Assino - Chico de Venâncio.

    
Terminei de ler com lágrimas gotejando o papel. Fechei os olhos, mentalizei a imagem dele e balbuciei, de coração e alma, antes de irromper num choro convulso:
"Adeus, muito obrigado e Deus lhe pague, Chico de Venâncio.

Guardei esta história por várias décadas. Minha mãe, que guardou a manchete do jornal e a carta, aconselhou: "Filho, não conte isso para mais ninguém. Quem mais no mundo, senão eu, iria acreditar que um sujeito, com 22 mortes nas costas, foi por sete dias e noites, seu Anjo da Guarda."


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Em 1984, após receber o Prêmio pelo 1º lugar desta história, dentre milhares enviadas ao "1º Concurso Literário Nacional, Alpargatas de Histórias da Estradas", na Churrascaria Butantã, São Paulo, o jornalista Satoru Takaesu, da Revista "5ª RODA", me entrevistando, perguntou: 
    "Orlando, tudo bem, sua história verídica arrasou. Eu mesmo fui um dos que, como jurado, votei nela. Agora lhe pergunto: não foi muita ingenuidade da sua parte, ter dado carona a dois desconhecidos, levando-os ao seu lado, durante quase sete dias e noites?!"  
    Respondi: 
    "Satoru, se ligue na data em que dei essas caronas. 1962. Nessa época, praticamente não existia assaltos à mão armada e essa bandidagem que hoje assola o país. Era muito comum motoristas dá carona pelas estradas. Ônibus eram raríssimos! Na estrada o que mais se via, era caminhões "paus de Araras!!"
    Satoru sorriu e disse:
    "Realmente Orlando, em parte, você tem razão."

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